Desafios fiscais da construção civil e as dificuldades impostas pelo fisco
Fisco e contribuintes interpretam a norma tributária de forma oposta, assim como julgadores fiscais e o Judiciário
2/22/20235 min read


Não chega a ser novidade que, fora os problemas de engenharia e operação, o maior obstáculo na construção civil é a complexidade da legislação fiscal. Além da alta carga tributária, que reduz a margem de lucro das construtoras e limita o poder de investimento em novos projetos, as regras de conformidade tributária impostas pelo fisco também são responsáveis por autuações devido à quantidade de obrigações acessórias que as empresas precisam cumprir.
A interpretação da legislação tributária também é um problema, já que é confusa, difícil de entender e constantemente alterada, levando os contribuintes a erros na apuração e no pagamento dos tributos. Em verdade, o fisco e os contribuintes interpretam a norma tributária de forma oposta, assim como os julgadores fiscais e o Poder Judiciário, o que cria um cenário propício para disputas fiscais com soluções incertas.
Infelizmente é do cotidiano das construtoras, sobretudo diante das prefeituras, insurgirem-se contra o pagamento de tributos para expedir licenças ou contra a cobrança do IPTU incidente sobre a obra ou unidades autônomas, antes da expedição do certificado de conclusão de obra. Essas medidas afetam diretamente as finanças das empresas, obrigando-as a suportar um ônus desnecessário.
Diante desses desafios, propomos analisar esses problemas práticos e colocá-los diante das decisões dos tribunais para avaliar as chances das construtoras em relação às demandas. Vejamos.
A fim de obter a autorização para a conclusão da obra e a expedição do “habite-se”, a empresa de construção civil deve comprovar a quitação do ISS ao fisco municipal. Para isso, é necessário preencher a Declaração Tributária de Conclusão de Obra (DTCO), um formulário, que é usado pelo fisco municipal como condição para liberar o empreendimento, desde que o ISS esteja quitado.
Não sabemos se a exigência é recorrente em todos os 5.570 municípios existentes no Brasil, mas pelos menos nas capitais é comum, sobretudo em São Paulo. Na capital paulista, o art. 83, I da Lei 6.989/66, que dispõe sobre o sistema tributário do município de São Paulo e dá outras providências, assim determina:
CAPÍTULO IV – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza
Art. 83 – A prova de quitação deste imposto é indispensável:
I – à expedição de “Habite-se” ou “Auto de Vistoria” e à conservação de obras particulares;
II – ao pagamento de obras contratadas com o Município.
Embora a norma imponha a quitação do tributo para a emissão do “habite-se”, evidentemente que a norma de pagamento de tributo e a norma de autorização administrativa (norma de política urbana) têm naturezas distintas e incomunicáveis. Portanto, a emissão do “habite-se” independe da comprovação de pagamento do ISS, pois isso configuraria a utilização de meio indireto de coerção para fins de pagamento de tributo.
Conquanto não seja uma novidade essa imposição normativa, as empresas de construção civil têm se insurgido contra a ilegalidade cometida pelo município. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), sensível da questão de se utilizar um meio indireto de coerção para fins de pagamento, tem tomado decisões unânimes nas Câmaras de Direito Público, declarando que a exigência de comprovação de quitação do ISS para obtenção do “habite-se” é expediente ilegal[1], como se verifica na ementa abaixo:
“ATO ADMINISTRATIVO. Concessão de “Habite-se”. ISSQN. Expedição do Auto de Conclusão de Obra (habite-se) condicionada a apresentação de comprovante de quitação do tributo. Impossibilidade. Ato administrativo de natureza técnico urbanística, relacionado à segurança, solidez e condições de habitabilidade, que não se relaciona com o fato gerador do tributo. Sentença de concessão da segurança mantida. REEXAME NECESSÁRIO NÃO ACOLHIDO. (TJSP; Remessa Necessária Cível 1034827-89.2022.8.26.0053; Relator (a): Jarbas Gomes; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 13ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 02/02/2023; Data de Registro: 02/02/2023)”.
Em outra situação comum, o momento de incidência tributária é invertido. Enquanto para expedir o “habite-se” o órgão fiscal municipal exige a quitação do ISS relacionado à obra do empreendimento construído, a Prefeitura de São Paulo exige o pagamento do Imposto sobre a Propriedade Imobiliária Territorial Urbana (IPTU) antes da expedição do mesmo documento.
Em resumo, a exigência do IPTU não está ligada ao fato de a obra estar concluída e pronta para ser habitada. A prefeitura pode requerer o pagamento do imposto mesmo antes da emissão do certificado de conclusão de obra “habite-se”, baseado na norma tributária municipal.
O TJSP, ainda que profira alguns julgamentos contrários aos interesses do contribuinte, aos poucos vem modificando o entendimento no sentido de reconhecer que o DTCO se trata de um estágio anterior a concessão do “habite-se”, pois, somente a partir da expedição “habite-se” que poderá ser considerada a propriedade habitável pelo contribuinte.
Ademais, o artigo 4º da Lei Municipal 6.989/66, dispõe que a edificação se considera existente, para efeito de incidência do IPTU desde o instante em que ofereça condições de habitabilidade. Sendo assim, somente com a emissão da certidão “habite-se” em última análise, que ficaria o indivíduo autorizado a tomar posse do imóvel e habitá-lo. Ou seja, é a partir dessa autorização que o imóvel se torna propriedade para fins da materialidade do imposto.
Por fim, ainda em relação ao IPTU, o órgão fiscal municipal insiste em exigir valores referentes à diferença de metragem entre o terreno e a obra concluída, mesmo anos depois da conclusão e de forma retroativa. É o que se denomina de lançamento complementar.
Nessa situação, a empresa finaliza a construção do empreendimento. Passo seguinte, transmite a DTCO, que é uma obrigação acessória que contém a informação sobre a metragem construída para fins de pagamento do IPTU e permite ao fisco municipal aferir o quantum debeatur do imposto. Passado algum tempo depois, o fisco renova o lançamento do tributo sob o argumento de estar complementando o lançamento anterior.
O contribuinte consegue afastar a exigência do IPTU complementar sustentando que a revisão de lançamento somente pode decorrer de fato não conhecido pelo município por ocasião dos lançamentos anteriores, como pacificado pelo STJ no Tema 387.
Em síntese, o setor da construção civil enfrenta vários obstáculos por parte do fisco municipal, e as empresas devem estar preparadas para lidar com as ações fiscais, recorrendo ao Poder Judiciário, se necessário, para defender seus interesses.
[1] Outros Precedentes: AI nº 2246076-98.2022.8.26.0000, Apelação / Remessa Necessária nº 1049467-34.2021.8.26.0053, Remessa Necessária Cível nº 1035594-30.2022.8.26.0053, Apelação Cível nº 1016976-37.2022.8.26.0053, Remessa Necessária Cível nº 1034827-89.2022.8.26.0053.